terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Um conto de Natal.

Este deve ser o conto de natal de nossos tempos. Os dois meninos foram catar material reciclável no lixão de Campo Grande, capital do Mato Grosso do Sul. Uma das máquinas empurrou a massa de detritos, para fazer espaço – e os soterrou. Um deles, mais ágil, conseguiu escapar. Maikon Correa de Andrade, de nove anos, ficou sob o lixo, e seu corpo foi encontrado muitas horas depois pelos bombeiros.

Maikon deve ser um dos milhares de máicons que receberam esse nome em homenagem a Michael Jakson, porque é assim que alguns ouvidos registram o nome do ídolo. Um dia, a mãe de Maikon deve ter sonhado destino de riqueza e de glória para o filho, e, nessa esperança, dado ao recém-nascido o nome de uma estrela. Maikon não sabia cantar, não sabia dançar – e talvez nem soubesse catar alguma coisa que prestasse no meio do lixo. Ele poderia ter pisado em uma agulha de seringa e se ter contaminado de alguma doença fatal, como já ocorreu a muitos. Mas poderia ter encontrado alguma coisa ainda precariamente servível, como um brinquedo jogado fora. Ou, apenas, teria recolhido restos de metal, fios de cobre, coisas de estanho e chumbo, para serem vendidos a intermediários, e destinados à reciclagem. Se Maikon conseguiu alguma coisa, não a tinha em suas mãos, rijas depois de tantas horas já mortas.

A morte de Maikon é um conto de Natal, sem a ternura dos relatos de Dickens ou de Mark Twain – mas é também a parábola negra do novo liberalismo triunfante. Somos uma sociedade que se dedica a produzir lixo.

As mercadorias que chegam ao mercado são, quase todas elas, lixo. Começamos com a embalagem – e essa civilização pode ser considerada a “civilização da embalagem” – tanto mais inútil quanto mais sofisticada. A essência da mercadologia – ou do marketing, se preferirmos – é a embalagem, trate-se de manteiga ou de candidatos a cargos eletivos; trate-se de hospitais ou de calistas. Todos os produtos, que a embalagem embeleza, são também lixo em sursis: concebidos para durar pouco. A idéia da reciclagem, fora a dos metais, é recente. Trata-se de um escamoteio da consciência, a de que o meio ambiente pode ser preservado com esse expediente esperto do capitalismo.

O mundo produziria menos lixo, se a idéia do lucro não prevalecesse sobre a idéia da vida. Assim, é o próprio capitalismo, em sua essência, que deve ser discutido. A mesma desrazão que produz o lixo material, produz o que sua lógica considera o lixo humano – os seres descartáveis que o senso estético e prático burguês rejeita. Os pobres são seres instrumentais, como as ferramentas que enferrujam, e, uma vez sem serventia, pelo uso e pelo tempo, devem ser jogadas fora. Sua reciclagem se faz nos filhos, que podem ser usados.

Maikon foi sepultado no lixo em que buscava a sobrevivência antes que cumprisse o destino do pai e, provavelmente, do avô. Morrendo tão cedo, frustrou o destino que provavelmente o esperava. Nada mais natural que Maikon, que morava em um bairro miserável de Campo Grande – ironicamente batizado com o nome do primeiro bispo e arcebispo da cidade, Dom Antonio Barbosa – se misturasse, aos nove anos, com os resíduos dos bairros ricos.

Mas, e se Maikon não tivesse ido ao lixão nesses dias entre o Natal e o Ano Novo, quando há presépios toscos mesmo nas casas pobres, e quando se celebra a vinda de Cristo e o início de mais uma volta da Terra em torno do Sol – o que poderia ocorrer em seu futuro? Como outros meninos, não muitos, mas alguns, ele talvez viesse a driblar o destino, crescer e deixar uma forte presença no mundo. Não era de se esperar - mesmo com a tentativa desnecessária dos evangelistas em lhe conferir progênie divina e ancestralidade nobre - que aquele menino nascido em uma gruta de Belém, viesse a dividir o mundo em duas eras. Afinal, ele, nascido na estrada, era de Nazaré – e se dizia, em seu tempo, que de Nazaré nada chegava de bom a Jerusalém.

Mesmo com o estranho nome de Maikon, o menino de Campo Grande era ainda um enigma, quando morreu sufocado pela sujeira da cidade rica.

Toda criança encerra, em si mesma, a dialética do futuro. Maikon poderia vir a ser um traficante de fronteira, ou um grande homem, nas artes ou na ciência. É nesse profundo mistério que se sepultou seu destino. O corpo, resgatado do lixo, voltou ao barro de que todos nós viemos, ricos e pobres, orgulhosos uns, humilhados outros.

Mauro Santayana é colunista político do Jornal do Brasil, diário de que foi correspondente na Europa (1968 a 1973). Foi redator-secretário da Ultima Hora (1959), e trabalhou nos principais jornais brasileiros, entre eles, a Folha de S. Paulo (1976

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